De como romperam as batalhas, e as do Príncipe venceram as d´El- Rei D. Fernando, e a d'El Rei D. Fernando venceu a d´El- Rei D. Afonso, que se recolheu a Crasto Nunho, e do mais que se seguiu até fim da batalha
E postas e ordenadas com espantosa vista as azes de uma parte e da outra para encontrar, sendo já casi sol posto, El-Rei mandou dizer ao Príncipe que com sua benção rompesse logo, o qual por lhe obedecer e cumprir o que tanto desejava, depois de em ambas as batalhas se fazer pelas trombetas sinal de batalha, elle e assi seus capitães com singular destreza e maravilhoso esforço, deram assi rijamente nas batalhas contrairás, que nem podendo ellas soffrer nem resistir tanta força, logo uma após outra foram desbaratadas e postas em fugida.
E para aquella hora ante da peleja deu o Príncipe á sua gente por apellido S. Jorge e S. Christovâo, S. Jorge por padroeiro de Portugal, e S. Christovâo por devoção de Jorge Corrêa, commendador do Pinheiro, que na mesma hora lh'o lembrou ; era alferes do Príncipe que levava sua bandeira Lourenço de Faria, homem fidalgo, que n'este dia e em todo los outros por sua obediência e esforço o fez como bom cavalleiro, e o Príncipe por tal o reconheceu sem pre.
E assi como as batalhas do Príncipe no desbarato fizeram a estas d'El Rei D. Fernando, assi a batalha grande d'El-Rei D. Fernando fez na d'El-Rei D. Affonso, que sem alguma força nem resistência a rompeu logo, e destroçou com damno e mortes de muitos, e não foi sem causa ser assi, porque na batalha do Principe era a frol dos fidalgos e nobre gente de Portugal, que falleceram n'esta d'El-Rei D. Affonso, e mais na batalha d'El-Rei D. Fernando vinha muita e mui grossa gente d'armas eucubertados, além dos ginetes, e mais lançaram diante de si uma gram soma d'espingardeiros, que ao romper fizeram com seus tiros fronteiros duvidar e enfiar os cavallos e a gente da batalha d'El-Rei D. Affonso.
Na qual sendo elle com sua bandeira dos dianteiros, acharamse com elle ao tempo do encontrar -mui poucos, entre os quaes eram D. Gomez de Miranda, Prior de S. Marco em Castella, e Bispo que depois foi de Lamego em Portugal.
E por tanto vendo-se em alguma maneira da victoria desesperado, conveio-lhe volver e procurar por sua salvação, parecendo-lhe que pois a sua batalha onde a mais força estava fora desbaratada, que a do Principe seu filho em que havia menos gente e de que não havia vista nem recado, também seria perdida.
Pelo qual havendo já suas cousas por chegadas ao derradeiro estremo de desaventura, vendo já diante entre si e a ponte de Touro muita gente contrairá, crendo que sem ser morto ou preso se não podia já á dita ponte recolher, foi aconselhado por Pedralvares de Souto-Maior, conde de Caminha, e por João de Porras, e por outros poucos que o sempre acompanharam, que por aquella noite se acolhesse á fortaleza de Crasto Nunho, que estava por elle, e assi o fez.
O Principe aquelle dia e hora não menos avisado que bem afortunado capitão, como se viu com sua gente em segura e perfeita victoria, por se lhe não seguir do longo encalço algum perigoso revés, logo a mais que pôde recolheu para a sua bandeira.
E porém alguns seus e pessoas principaes esquentados e favorecidos do prospero vencimento que seguiam, por não terem no seguimento o resguardo que deviam, no cabo do encalço tornaram a ser mortos e presos, porque os castelhanos das batalhas destroçados que fugiam, refizeram -se com uma batalha de El -Rei D. Fernando, que acerca de uma legoa na reçaga estava, com que achando-se muito mais fizeram sobre os portuguezes volta, os quaes sendo já atalhados e cingidos da outra batalha grande, que desbaratara a El-Rei D. Afionso, não se poderam salvar.
E porém o Príncipe depois do desbarato que fez, alli onde acabou de recolher sua gente, esteve no campo em um corpo çarrado sem nunca mover atrás sua bandeira, a que muitos da batalha vencida d'El-Rei D. Affonso por seu bem e salvação se recolheram, com os quaes, e com outros que fora do tempo necessário sobrevieram de Touro, refez uma grossa batalha, com que aquella noite ficou pacifico senhor do campo.
No qual algum dos Reis, cuja era a querela e esperança de vencer, não aturou nem esteve ; porque como disse também El-Rei D. Fernando não foi em pessoa própria na sua batalha, que venceu a El-Rei D. Affonso, mas como era pratico guerreiro, por vêr como as cousas de tamanha ventura sobcediam, apartou-se fora em uma batalha, e quando logo vio vencidas e desbaratadas suas tamanhas e primeiras batalhas, pelas batalhas do Príncipe que eram menos em gente, crendo que assi o seriam as outras suas pelas d'El-Rei D. Affonso, foi aconselhado que se recolhesse como recolheo, e se foi a Çamora.
Pelo qual sua gente achando-se no campo sem Rei, nem certo capitão que a regesse, com temor da batalha do Principe que viam refeita, não sendo bem certificados do destroço d'El-Rei D. Affonso, se refizeram também junto com ella em uma outra batalha de que uns e outros não se viam tanto como ouviam ; porque a este tempo a noite era já casi garrada, e todo o mal que de uma parte e da outra se fazia era somente de gritas e tocar de trombetas e atabales que nunca cessavam.
Alli D. Vasco Coutinho, que depois foi conde de Borba, prendeu D. Anrique, conde d'Alva de Liste, que vinha de contra Touro reconhecer a batalha do Príncipe, não sabendo pela noite cuja era.
E alli um escudeiro que se dizia Gonçallo Pires, criado de Gonçalo Vaz Pinto, trouxe ao Príncipe a bandeira real d'El-Rri D. Affonso, que por força e como homem de bom coração a tomou a um SoutoMayor, castelhano, que a levava, e o prendeu sobre sua menagem, a qual não foi aquelle dia tomada das mãos de Duarte d^lmeida, alferes pequeno, até que lh'as primeiro não deceparam com outras infindas feridas, que no rosto e em todo o corpo houve, de que escapou.
E a tanto mal se estende o máo sobcedimento das cousas, que este alferes, a que tanta honra e riqueza após isto se devia, viveu depois aleijado e pobre, e não com galardão dino de tal serviço.
Nem ao escudeiro da bandeira carregou muito a balança de sua satisfação; porque com a venturosa fidalguia e armas honradas, que por isso lhe deram, houve somente cinco mil reis de tença, com que lhe foi forçado tomar a fouce e a enxada, por mais seguras e proveitosas armas do sustentamento de sua vida, com que sem mais bem nem favor, e com muita pobreza viveu e acabou.
E estando assi no campo juntas estas batalhas e ambas contrairás, a dos castelhanos por estar sem Rei e duvidosos de sua ventura, e por terem o recolhimento de Çamora mui longe, começaram entre si de ferver e se afiar mostrando claros sinaes de destroço se foram cometidos.
E porém tomaram por conselho retraer-se e acolherem-se, sem cometer batalha nem peleja se lh'a não desse, e assi o fizeram, e sem algum recado e com muito desmando se acolheram a Çamora.
Pelo qual achando-se o Príncipe só no campo, e sem receber em sua pessoa nem sua gente rota nem destroço, antes o tinha feito nos contraíres, houve-se por herdeiro e senhor da própria victoria.
E porque os Reis esperavam para mais claro conseguimento, sua determinação foi sobreser no campo, e não se partir d'elle três dias.
Mas o Arcebispo de Toledo que no mesmo campo era com elle, publicamente lhe disse que depois dos imigos partidos bem cumpria por os três dias estar no campo três horas continuas, a razão de hora por dia, por comparação que trouxe da Resurreição de nosso Senhor, que foi depois da morte três dias não todos inteiros, mas porque tomou de três dias tomando a parte por todo.
E com este conselho que o Príncipe tomou do Arcebispo, como de pessoa tão principal, e no semelhante auto e cerimonias tão pratico e sabedor, depois d'estar no campo as três horas e mais, sem parecer n'elle gente contrairá, elle com repoiso e regrada ordenança abalou contra Touro.
E ao entrar da ponte houve muita pressa ; porque até sua chegada a entrada se çarrou a todos, e por sua ordenança entraram na cidade todos mui tristes e desconfortados, uns pelos filhos, parentes e amigos que não viam, nem sabiam se na batalha foram mortos ou feridos e presos, e todos pela dorosa privação d'El-Rei D. Affonso, que ali não viam, nem por então saberem d'elle novas.
O Príncipe pela incertidão de seu padre, crendo pois alli não parecia, que seria morto ou preso, foi sobre todos mais triste e anojado, e posto aquella noite em grande pensamento, e não menos o foi El-Kei onde estava, duvidando da vida e salvação do filho, de que a mór parte da desaventura não falleceu á Rainha que estava no castello, até o outro dia que o pae foi certificado da saúde e prospera victoria do filho, e o filho da salvação e saúde do pae acolhido em Crasto Nunho.
Na qual fortaleza indo El -Rei tão só e desacorrido, o alcaide d'ella Pêro de Mendanha, por nação fidalgo castelhano, e no amor e lealdade bom e verdadeiro português, o recolheu e lhe obedeceo com muita lealdade e firmeza, e em caso tão triste e tão averso para El-Rei, elle e sua mulher o agasalharam honradamente e confortaram com muito despejo, dando-lhe em suas fortunas por emxemplos doutros mui grandes esperanças, até o outro dia, que com muita gente que o Príncipe mandou de Touro El-Rei tornou a elle seguramente.
De como o Príncipe se tornou a Portugal, e do que El-Rei D. Affouso fez por então em Castella.
Onde sobre conselhos que acerca d'estes feitos El-Rei e o Príncipe tiveram, foi acordado que o Arcebispo de Toledo se fosse como foi a Tallavera e a suas terras, e com elle por sua segurança D. Garcia, Bispo d'Evora, o que foi cousa mui difícil e de assas perigos, pelas muitas terras de contrairos porque com tão pouca gente haviam de passar. E como o Arcebispo ficou em salvo, o Bispo d'Evora com grande risco se veio a Portugal á frontaria de riba de Udiana, que lhe foi encomendada.
E assi acordou que o Príncipe se tornasse a Portugal, o qual como era Príncipe bom e piedoso, depois de prover e remedear com mercês e visitações aos que de sua batalha foram presos e feridos, partio na semana maior de Touro, e veio dormir a Crasto Novo, fortaleza que estava por El Rei seu padre, e ao outro dia passou a gente o rio em uma barca, e os cavallos e bestas a nado, por um porto que se diz Rico Váo, e de hi foi ter a Páscoa a Miranda do Doiro, e com elle o conde de Penella D. Affonso de Vasconcellos, e assi pouca gente; porque os mais grandes e senhores com todolos mais ficaram em Touro com El-Rei.
E ficando El-Rei D. Affonso em Touro, El-Rei D. Fernando veio logo cercar mui poderosamente Cantalapedra, dentro da qual muitos fidalgos e cavalleiros da corte d'El-Rei D. Affonso, como desejosos de honra se lançaram.
Foi o cerco em todo bem apertado, em que era por capitão Bandarra, e depois á partida d'El-Rei D. Affonso para Portugal leixou Alonso Perez de Biveiro, casado com D. Mecia de Menezes, portugueza, e de Touro durando o cerco, foi El-Rei em pessoa lançar uma grossa cilada aos cercadores, e soltou corredores que foram dar no arraial, que apoz elles se soltou com tanto desmando, que se o duque de Bragança com outros ante tempo se não descobriram caíram os contrairos na cillada, e se fizera uma cousa muita assinada e de muita honra e serviço para El-Rei.
E n'este tempo sendo El-Rei D. Affonso certificado de um dia que a Rainha D. Izabel, de Madrigal onde estava se havia de ir a Medina, sahio de Touro aforrado com sós mil lanças sem carriagens, e foi secretamente dormir a Crasto Nunho, e de hi ao outro dia por en
cubertas que levou, se foi escondido lançar junto do caminho por onde a Rainha havia de passar, cuja gente sahindo já fora de Madrigal â vista das batalhas d'El-Rei, essa que era fora com pressa se tornou a recolher á. villa, e outra alguma de dentro não sahio mais, por onde pareceu claro, que fora aviso secreto que a Rainha d'alguma pessoa do arrayal d'ElRei D. Affonso recebera, e com isto desaviado se tornou El-Rei a Touro, não esperando já nenhum bom effeito de sua empresa.
De como se ordenou a ida d'El-Rei em França, e se veio a Portugal com a Rainha D. Joana
En'este tempo porque El-Rei sentia já bem que seu poder nem ajuda dos grandes de Castella, não lhe davam para sua demanda tão firme esperança como cumpria, forçado de um vivo desejo de sua honra, enviou por seus messegeiros requerer ajuda a El-Rei de França, que com El Rei D. Fernando como só Rei d' Aragão então não estava d'accordo, e tinha por meio de D. Álvaro d'Atayde feitas suas lianças com El-Rei D. Affonso, como só e verdadeiro Rei de Castella.
E a certidão d'isto trouxe o dito D. Álvaro a El-Rei, estando em Touro.
Pelo qual vencido principalmente de seu apetite, sem muita certidão do poder tão estranho e tão duvidoso como era o de França, desconfiado em todo do seu, determinou vir-se a Portugal e de hi passar logo em França, crendo que o remédio e ajuda para seu recurso, que tanto desejava, com sua ida e em sua pessoa se faria mais fácil, e ainda se lhe daria maior.
E que os inconvenientes que por ventura El-Rei de França pela guerra do duque de Brogonha poderia para isso ter, elle na confiança de seu mui chegado sangue os temperaria, com paz e assesego que entre ambos procuraria.
E como El Rei o determinou, assi o cumprio, e leixou nas outras fortalezas gente e capitães de recado, e em Touro gente de guarnição, e com ella por capitão o conde de Marialva D. Francisco Coutinho;porque a este tempo João d'Ulhoa a quem pertencia era fallecido, e os filhos que d'elle ficaram eram muito moços para tal encargo, e El-Rei casou o conde com D. Maria d'Ulhoa sua filha, a que deu em casamento a villa de Castel-Rodrigo, por morte de Vasco Fernandes de Gouveia que a tinha ; porque sem filho barão ligitimo também falleceu em Castella estando em Touro.
E depois d'El Rei prover as cousas de Castella como melhor pôde, se partiu com a Rainha na entrada do mez de Junho, e seguramente veio a Miranda do Doiro onde teve a festa do Corpo de Deus, na qual com a cerimonia devida fez primeiro conde d'Abrantes Lopo d'Almeida, que era Vedor da Fazenda, e lh'o tinha bem merecido.
E de Miranda se foi a Rainha á cidade da Guarda, e com ella o conde de Villa Real, que era fronteiro mór d'aquella comarca, e o Bispo de Vizeu D. João d'Abreu.
E da Guarda se foi a Coimbra, onde o Príncipe se veio com ella ajuntar, e a acompanhou até á villa d' Abrantes, onde depois esteve muito tempo, como ao diante se dirá. E El Rei se foi de Miranda á cidade do Porto, onde com elle se ajuntou logo o Príncipe seu filho, e a Senhora Infante D. Beatriz com todolos grandes e senhores principaes do reino. E d'alli foi enviado Pêro de Sousa notificar a El-Rei de França a ida d'El-Rei D. Affonso, que de todo hi foi determinada.
E sendo já concordado que por mór brevidade da viagem fosse pelo mar do Ponente e saisse em Bretanha, mudou-se o acordo para o mar de Levante ; porque pelo outro mar Occeano poderia d'El-Rei D. Fernando receber maior contradição, por rasão da frota de Galliza e Biscava, com que seria mais poderoso.
De como El-Rei partio de Lisboa para França, e da maneira em que foi até se ver com El-Rei de França
Ecom esta determinação se partiram, e ajuntaram todos a Lisboa, onde xvi navios para a embarcação d'El Rei foram logo prestes, dos quaes se aparelhou uma urca para sua pessoa, em que embarcou no mez de Agosto com dois mil e dozentos homens, em que iam quatrocentas e oitenta pessoas a que em terra eram ordenadas encavalgaduras, alem d'outra gente de pé, e com vento de viagem arribou em Lagos, onde Cullam, famoso cossairo frances certificado já das amizades e lianças d'estes reinos com França, andando poderoso no mar, veio alli fazer reverença a El-Rei, que o recebeu com grande honra e mui graciosamente, e além do assinado serviço que o dito Cullam LHE TINHA JA FÉITO, em ser em sua ajuda NO DESCERCO DE CEUTA, quando então dos castelhanos e dos mouros fora juntamente cercada como se dirá, ainda ficou de concerto andar d'armada em seu favor contra Castella, para que se ajuntou com Pedro de Tayde, fidalgo português, que com a nâo grande que se dizia a Lopiana, e com outros navios, de mandado d'El-Rei andaram também d'armada.
Os quaes todos logo de hi a poucos dias sendo El-Rei D. Affonso em França, ao Cabo de S. Vicente aferraram quatro carraças de Genoa, e sendo já por força entradas, em uma se acendeo fogo em um barril de pólvora, em que deu um tiro de fogo, de que todas as náos e carraças que eram encadeadas arderam, com mortes e perda de muita gente, em que o dito Pedro de Tayde também morreu.
E de Lagos passou El-Rei logo a Ceuta, que poucos dias havia que sendo n'ella capitão Ruy Mendes Ribeiro, como nobre fidalgo e d'esforçado coração a livrara de duas grandes afrontas e perigos em que foi posta ; porque juntamente foi cercado e combatido de castelhanos pela Almina, e dos mouros pela Aljazira, e de todos com sua honra e grande louvor o dito Ruy Mendes se livrou, com quanto o dito Ruy Mendez do cerco dos castelhanos era muito mais afrontado, sendo dos mouros comettido que com segurança sua para que lhe dariam seguras arrefens, lhes desse entrada por dentro de Ceuta para darem nos ditos castelhanos e os matarem e captivarem, e elle seria livre do cerco, elle dito Ruy Mendes, como esforçado cavalleiro e bom christão, por não minguar em sua fé e esforço o não consentio.
O que El-Rei em pessoa lh'o agradeceo e estimou como era razão.
E de Ceuta partio El Rei, e sendo no mar através de Colybre, que era de França, com propósito deportar em Marselha ou aguas mortas ; porque o vento não terçou bem sahio todavia e desembarcou em Colybre, d'onde despedio os navios em que fora de Portugal, e ali estava um capitão cTEl-Rei de França, de que El-Rei foi logo bem recebido, e depois provido de bestas e cousas que cumpriam para ir, como foi por terra a Perpinham.
Onde El-Rei foi com grande honra e estado recebido, e elle e todolos seus bem aposentados de graça, e por reverença e acatamento de sua pessoa real, o capitão e governadores da villa mandaram soltar e abrir os cárceres a todolos presos que na cidade havia.
E assi se fez depois nos outros lugares de França por que El-Rei passou.
De Perpinham enviou El-Rei D. Francisco d'Almeida a El-Rei de França notificar-lhe sua chegada, e assi de sua ida logo a elle, para que hi também se proveo para El-Rei e para os de sua companhia de bestas para encavalgaduras de suas pessoas, e carretas para fardagem, com que seguio seu caminho á corte d'El-Rei de França por Narbona e Mompiler e Befers e Nimis, todas grandes cidades e villas de França em Languidoque.
E na cidade de Nimis leixou El-Rei a estrada romam, que vae a Avinhão, e tomou outra da ponte de Santisprito, caminho da cidade de Lião.
Na qual por razão de corrução d'ares morbosos e pestenciaes de que estava perigosa não entrou, e passou com sua gente adiante.
E ante que a ella chegasse, no caminho lhe veio fazer reverença o duque de Borbom, acompanhado de grandes homens. E assi foi festejado e agasalhado em gram perfeição em casa de Monseor de Sam Valher, que fora casado com uma filha bastarda d'El-Rei de França.
E passahdo El-Rei D. Affonso por Lião, e chegado a um lugar que dizem Ruana, recebeo o primeiro recado d'El-Rei de França, fazendo-lhe saber que com sua boa ida era mui alegre.
E assi chegou á nobre cidade de Burges em Berrí, que é na doce França, onde
repousou alguns dias, nos quaes de mandado d'El-Rei de França vieram a El-Rei D. Affonso para lhe fazer companhia um senhor e um Bispo de Una, com que para prazer foi vêr algumas cousas, em especial Moris Sagevia, fortaleza que o duque de Berrí fez no canto de duas ribeiras, a mais gentil que ha em toda França. E ao outro dia foi á villa, que na historia antiga dizem se chamava Ageosa Guarda, onde agora está uma grande e devota xA.badia de S. Bento, cujo Abade mostrou a El-Rei um mui rico e antigo livro da Historia de Lançarote e Tristão, por ventura mais verdadeira do que cá se magina.
Da primeira vez que El-Rei D. Affonso se vio com El-Rei de França em Tors em Toraina
El-Rei de França era, na cidade de Tors em Toraina, onde quiz que El-Rei D. Affonso o visse e fosse bem aposentado.
E depois de ter certo seu aposentamento, El-Rei de França com uma fingida romaria, só se partio de seu aposentamento que é junto da cidade, e leixou n'ella toda sua corte com o seu Minham Monseor d'Argentam, para elle com os Regedores da cidade fazerem como fizeram a El-Rei um mui solemne recebimento, entregando-lhe ás portas com palavras de grande veneração e muito acatamento as chaves d'ella.
E El-Rei de França passados cinco dias veiu-se ao dito seu aposentamento, que dizem Plesirdubues, e d'ali como de caminho determinou vir vêr El-Rei D.Affonso á sua pousada.
O qual sabendo já isto, com os senhores de seu conselho praticou a maneira de cortesia que em seu recebimento teria.
E accordou-se em todas razões, e principalmente consirado o tempo e necessidade d'elle, que fosse a maior que guardado o seu estado se podesse fazer, e fosse a que lhe ensinasse a hora e tempo em que se vissem ; porque entre os Reis não se podia dar certa forma de palavras nem cerimonias, que entre si dissessem e fizessem em semelhantes autos.
E avisado El Rei D. Affonso do dia em que El-Rei de França o quereria ir vêr, vistio-se em vestiduras onestas e reaes com propósito de a pé sahir e o tomar na rua, ou ao menos nas escadas dos paços, mas ElRei de França de reavisado, pelo n'isso impedir mandou a El-Rei diante dois seus parentes grandes senhores e mui gentis homens, os quaes em El-Rei abalando para sair, cortezmente o detiveram, dizendo que repousasse ; porque El-Rei seu Senhor não viria tão asinha, e sendo El-Rei avisado que El-Rei de França era já na rua, em cometendo para sair, também o detiveram.
E finalmente em querendo El-Rei forçar seus detimentos, elles com muito acatamento lhe pediram, que d'onde estava em sua camará se não movesse; porque a elles não cumpria elle o fazer d'outra maneira.
E El-Rei porque entendeu que- seria ordenança praticada, folgou de lhes comprazer, e porém como elles entenderam que El-Rei de França era entrado na salla, deram logar que El-Rei D. Affonso saisse, e ambos os reis se ajuntaram no meio da salla.
E El-Rei de França vinha com um só barrete na cabeça, tendo já d'ella tirado um chapeo e duas grandes carapuças, e trazia solto um saio curto de máo pano, e cinta uma espada d'armas muito comprida,com a guarnição de ferro limada, e umas botas calçadas, e nos pés as esporas do mesmo jaez da espada, e ao pescoço uma beca de chamalote amarello, forrada de cordeiras brancas muito grosseiras, e suas calças brancas entretalhadas de muitas cores.
E ambos os Reis com os barretes nas mãos se abraçaram inclinados os giolos mui baixos.
E tendo El-Rei de França assi abraçado El-Rei, com os olhos no Ceo disse que dava muitas graças a Nossa Senhora e a Monseor Sam Martim, porque a um tão prove homem como eile era fizeram tanta mercê.
Que a seu reino e casa o viesse ver e visitar um tamanho Rei, que elle sempre desejara tanto de vêr e ter por irmão e amigo, e que porém elle não cresse que era vindo em reino estranho, mas no próprio seu ; porque assi se faria n'elle todo seu prazer e serviço, como nos de Portugal.
E com isto acabado se recolheram á camará, á entrada da qual sobre quem se cobriria e entraria primeiro houve entre ambos grandes o louvados debates.
E emfim El-Rei D. Affonso se deu por vencido, dizendo que havia por melhor ser-lhe bem mandado, que cortês.
Do que El-Rei de Franca e El-Rei D. Atfonso entre si acordaram para execução de sua ida
Ecomo entraram, depois de El-Rei de França perguntar a El-Rei por sua disposição, e tocar em muitas cousas de prazer, em conclusão disse, que por quanto as cousas da guerra sobre que era seu principal motivo requeriam muita pressa e não padeciam dillação, que logo ambos com o conde de Penamacor seu camareiro-mór se apartassem, como apartaram todos três.
E entre as cousas sustanciaes em que falaram e em que tomaram conclusão, foi ser necessário El-Rei D. Affonso ir em pessoa ao duque de Brogonha pedir-lhe gente e ajuda contra Castella, e que em caso que pelas differenças em que então andava com o duque de Loreina lh'a não podesse dar, ao menos tomaria d'elle duque de Brogonha tal segurança para elle Rei de França, sem receio de sua guerra mais livre e poderosamente * o poder ajudar.
E para o fazerem todos em sua ajuda com menos cargo, a todos cumpria justo titulo, que era dispensaçâo Apostollica para El-Rei D. Affonso poder casar com a Rainha D. Joana sua sobrinha, pois dos reinos que a ella pertenciam, como seu marido se intitulara.
E que logo alli se apartassem quatro pessoas de cada parte, para em breve consultarem e praticarem sobre a gente, dinheiro e cousas que para sua empresa cumpriam, e porem tudo em boa ordem.
E disse, mais que por quanto havia por certo que os castelhanos ás vezes folgavam vender fortalezas, que elle sempre houvera por melhor e mais barato compra-las por dinheiro, que por guerra, e que o dinheiro e sua pessoa com toda a gente de seu reino, elle lh'a offerecia para isso e para todo o mais que a sua honra e estado cumprisse.
E depois d'El-Rei D. Affonso Ih 'o remercear tanto quando tamanha esperança para suas necessidades requeria, se sairam já de noite, e do meio da salla onde se primeiro viram já com tochas se despedio d'elle El-Rei de França.
O qual enviou dizer depois a El-Rei D. Aflonso, que para elle convidar alguma gentil dama, como era usança e cortezia do seu reino,lhe pedia que quizesse cTelle tomar em tanto cincoenta mil escudos d'ouro.
Mas EIRei D. Affonso com palavras publicas de singular agardecimento, e com respeitos secretos que a seu estado real cumpriam se enviou por então escusar.
Aqui fez El Rei de França conde d'Abranches D. Fernando d'Almada, filho do outro conde Álvaro Vaz d'Almada, que morreu na batalha com o Infante D. Pedro, como atraz fica.
De como foram a Roma embaixadores d´ El- Rei de França e d´ El Rei D. Alfonso requerer a despensaçâo para poder casar con a Rainha D. Joana sua sobrinha
Epara cumprimento das conclusões em que ficaram, ordenou-se logo embaixada ao Papa sobre o requerimento da despensaçâo, em que d'El-Rei D. Afíonso foram embaixadores o conde de Penamacor, e o doutor João Teixeira, que depois foi Chanceller Mor, e Diogo de Saldanha, homem prudente e de grande autoridade, que seguiu a parte da Rainha D. Joana, e d'El-Rei de França foram o monseor de Sam Valher, e um grande letrado governador do parlamento de Granobra, cabeça do Deifinado.
E juntos estes embaixadores acompanhados de muita e nobre gente, fizeram seu caminho a Roma por terra, onde como pessoas que representavam tamanhos dois Reis como era o 1e França e o de Castella e Portugal, foram logo com grande honra recebidos.
E El-Rei D. Affonso aparelhou sua ida ao duque de Borgonha, que era em campo sobre a cidade de Namsy em baixa Allemanha, contra o duque de Lorreina com que tinha guerra.
E ante de sua partida El-Rei de França lhe disse, que por a pouca seguridade que tinha do duque de Borgonha, por ser muito orgulhoso, duvidava que tomando a cidade de Namsy sobre que estava, e destruindo o duque de Lorreina, por seguir novidades quereria entrar por França, e que com receios d'isto pelos segurar tinha sua gente na frontaria, que daria causa elle lhe não poder dar tanta ajuda, como sem isso faria.
Porém que se por seu meio d'El-Rei D. Affonso elles ambos ficassem verdadeiros amigos, e se liassem por casamentos dos filhos, como o duque por todalas razões devia querer, elle em sua ajuda poeria a coroa de França com todo seu poder, e que El-Rei D. Affonso devia requerer o duque que fosse com elle em pessoa; porque era bom capitão, e tinha muita gente e singular artilharia, e que sendo El-Rei D. Affonso d'estas amizades meio segurador, cada um d'elles teria receio de as per si quebrar, pelo não ter por contrairo, com as quaes muito cedo se faria pacifico Rei de Castella.
De como El-Rei D. Affonso se foi ver com o duque de Borgonha, e como logo se seguio a morte do dito duque
N´ esta confiança que El-Rei D. Affonso tomou de tudo assi acabar, partiu no Novembro / mui alegre, e com muita aspereza de neves e frios incomportáveis chegou a Camansam e Almansa,lugares mais acerca do arraial do duque, d'onde ElRei por terra regellada e toda cuberta de neve se foi vêr com o duque, e viram-se e abraçaram-se ambos a pé sobre o meio de um grande rio tolo tão regellado, que por elle seguramente passavam bestas e carretas como por uma forte ponte, e d'alli se tornaram ao arrayal do duque, que hi perto estava, onde o duque sobre as cousas com que logo soube que El-Rei a elle ia, lhe. disse que elle Rei de Portugal era entrado com um homem, em que não havia virtude nem verdade, dizenlo-o por El-Rei de França, e que para o crer não quizesse logo outra prova, se não 'que tendo enviado a elle que no mundo era tal e tão excellente Rei, e com requerimentos e mostranças de tanta paz, amor, e liança, logo após elle mandara muita gente d'armas em ajuda do duque de Lorreina seu inimigo e para contra elle.
Porém que elle tinha ao mesmo Rei de França em tão pouca estima, que com um só pJge, que mostrou, ousaria dar lhe batalha e esperar victoria.
Mas pois que elle Rei D. Affonso por assi lhe cumprir queria sua concórdia, que por lhe comprazer era d'ella contente, e lhe prometia leal e verdadeiramente, não somente de estar em toda paz e amizade que se entre elles podesse, mas que elle faria cumprir a El-Rei de França todo o que em sua demanda lhe tinha prometido e prometesse.
E com esta conclusão finalmente se partiram, para nesta sustancia do lugar a que tornavam concordarem e firmarem suas capitullações.
E d'hi a poucos dias praticando El Rei D. Affonso como isto se bem faria, veio sobre o cerco do duque de Borgonha, e contra elle a mesma gente d'armas d'El-Rei de França com outra muita do duque de Lorreina.
E o duque com quanto tinha muito menos gente e era de fome e de frios mui trabalhada, não aguardou ser em seu arrayal combatido, mas sahio fora a esperal-os, e no campo lhes deu a batalha, em que foi desbaratado e vencido com mortes e grande perda de sua gente, e querendo salvar-se por uma ponte já um pedaço da peleja, achou contrairos que a guardavam.
Dos quaes pelejando sem ser então conhecido, a um domingo, bespora dos Reis Magos do anno de mil e quatrocentos e setenta e sete, foi morto, e depois se conheceo no campo por os sinaes de seu corpo que um seu físico d'elle deu, e também por uma cellada rica que um seu page trazia, junto da qual pareceu que jazia, como jazia o corpo do dito duque.
Cuja morte que logo a El-Rei D. Affonso foi notificada, pôs a elle e a todolos portugueses em publico nojo e muita tristeza, com que deu suspeita aos franceses de o haverem por contrairo, e esteve em condição para d'elles receber por isso mais dano e perigo, que bom trato nem serviço.
E na morte e perda do duque de Borgonha acabou El-Rei D. Affonso de verdadeira e sustancialmente perder toda esperança de seu desejo e propósito ; porque em sua vida do duque estava toda a obrigação para El-Rei de França ajudar a El Rei.
E em sua morte foi o contrairo; porque como por ella El-Rei de França se vio livre e desocupado dos receios que do duque tinha, logo sem medo nem vergonha do que tinha prometido, desamparou o negocio de Castella, e entendeo do seu próprio, que foi haver e cobrar muitas terras da alta Borgonha e Picardia, que o duque lhe tinha tomadas, e por seu fallecimento ficaram sem resistência.
E porém El-Rei de França mandou logo recado a El-Rei D. Affonso, pedindolhe com palavras de grande esperança, que em tanto se fosse, como logo foi, aposentar se em Paris, onde esteve até o Maio, que El-Rei de França andou sempre em sua guerra, fazendo e acabando o que lhe cumpria.
Da resposta que os embaixadores houveram em Roma acerca da despensação que requereram
Os embaixadores dos Reis que eram em Roma, com muita instancia e efficacia requereram ao Papa Sixto quarto a despensação sobre que principalmente foram enviados, em que por parte de El-Rei D. Fernando de Nápoles, por ser casado com uma irmã d'El-Rei D. Fernando de Castella, e por outros senhores que favoreciam sua parcialidade, por causas de eminentes e oferecidos danos que alegaram, houve para a despensação se não conceder grande e total contrariedade.
Porque o Papa por ventura aconselhado n'isso catholicamente, consirando como El-Rei D. Fernando com a Rainha D. Izabel sua mulher eram pacíficos Reis de Castella, e El-Rei D. Affonso era n'elles em forças e poder mui desigual, houve por grande mal e perjuizo da christandade conceder a dita despensação, em caso que parecesse razão por ser direito conceder-se, por não dar com ella causa e titulo de uns e outros se guerrearem com mortes de christãos, e guerras continuas que se não escusavam, o que o Papa devia evitar especialmente; que ajuda d'Ei-Rei de França para El-Rei D. Affonso sempre em Roma se houve por mui duvidosa.
E estando n'estas duvidas e debates chegou a Roma nova da morte do duque de Borgonha, com que o Papa fazendo por ella o poder d 'El- Rei de França mui mais livre e despejado para sem contradição se quizesse poder dar uma grande ajuda, houve o direito e justiça d'El-Rei D. Affonso para a sobcessão de Castella por de mór efficacia, com fundamento do qual o Papa tomou um meio, que mais verdadeiramente foi clara denegação, o qual fui, que por quanto pelas razões alegadas, a El-Rei D. Affonso por si, sem França, a dita despensação não se devia conceder, e que com a inteira ajuda d'El-Rei de França era razão que se desse, que por tanto a elle mesmo Rei de França se devia de dar tomando-a elle com seu cargo.
Da conclusão que El-Rei D. Affonso tomou com El-Rei de França, quando com elle se vio a segunda vez
Com esta resposta se vieram os embaixadores, que acharam El-Rei D. Affonso já em Paris.
D'onde enviou logo o conde de Penamacor a El-Rei de França, que era na cidade de Raz dar-lhe conta da embaixada.
O qual volveo logo, com determinação que os Reis ambos no mesmo Raz logo se vissem, para onde El-Rei D. Affonso logo partio, e El-Rei de França a cavallo e vestido casi na maneira da primeira vista o veio receber, e foi com elle a seu aposentamento, que foi em uma mui grande e honrada Abadia de Cónegos Regrantes, em que El-Rei e toda sua gente se alojou.
Alli esteve El-Rei D. Affonso alguns dias, esperando a cautelosa e inútil determinação, ou mais certo desesperação d'El-Rei de França, que lh'a deu com certos apontamentos, que para discretos era clara escusa do que se pedia, com que El-Rei D. Affonso se despedio para Portugal.
E tão mal despachado como a desaventura do tempo ordenou; oorque assi como vivendo o duque de Borgonha, El-Rei de França por ganhar sua paz, ajudara de necessidade a El-Rei D. Affonso, assi por sua morte achando muita da sua terra desocupada para a poder cobrar, não curou d'isso, nem foi muito de culpar El-Rei de França por maiores promessas que fizera; porque para dar gente e dinheiro a Rei estranho, com que para isso ganhasse reino de empresa tão duvidosa, e leixar perder e não cobrar sua própria terra ( o direito e rasão que o a isso obrigasse seria escuro e máo d'achar.
Como o Príncipe cercou a vil/a d' Alegrete e a tomou, e doutras cousas que no reino se seguiram andando El- Rei D. Affonso em França
E Tornando ás cousas do reino de Portugal, tanto que El Rei D. Affonso partiu de Lisboa para França, o Príncipe D. João seu filho na entrada de janeiro se foi logo entre Tejo e Odiana, d'onde mandou continuar a guerra contra Castella, em que se faziam grandes e danosas entradas.
E porque a villa d'Alegrete estando o Príncipe em Touro foi manhosamente tomada por D. Affonso de Monroy,. Mestre que se disse d'AIcantara, que a esse tempo seguia o partido d'El-Rei D. Fernando, o Príncipe em que havia reaes bondades e virtudes, e o esforço do coração não falecia, no mez de Fevereiro de mil quatrocentos setenta e sete, lhe pôs tal cerco e a mandou combater assi rijamente, que por partido se rendeo, e lhe foi entregue com muita sua honra e louvor, e porém não sem dano e mortes dos cercadores e cercados.
E durando o dito cerco d' Alegrete foi também posto estreito cerco em Castella a Touro, e a Crasto Nunho, e a Cantallapedra, que ainda estavam por El-Rei D. Affonso.
E o Príncipe determinando de lhes soccorrer, fez muita gente prestes que mandou com o almirante Lopo Vaz d'Azevedo, e com Fernão Martins Mascarenhas capitão dos ginetes, e da villa de Pinhel onde chegaram, se tornaram por serem certificados que o soccorro com que iam, pela muita maior força dos cercos postos, se não podia por elles dar sem seu manifesto perigo.
E em fim os capitães cercados, Pêro de Mendanha, Alcaide de Crasto Nunho e Affonso Peres de Biveiro, capitão de Cantallapedra como nobres fidalgos e leaes servidores, por partidos que lhe fizessem nunca se deram, nem leixaram de ter as fortallezas até que lhe foi mandado por El-Rei D. Affonso, andando em França, visto como os não podia soccorrer que o fizessem, pelo qual a salvamento de suas honras e pessoas entregaram as fortalezas.
E com as bandeiras reaes de Portugal tendidas, por Castella se vieram a estes reinos; porque assim tomaram por partido.
E n'este anno de mil e quatrocentos e setenta e sete, houve o Príncipe de Pedro Pantoja, cavalleiro castelhano, as fortalezas de Zagalla e Pedra Bôa, que são do Mestrado d'Alcantara, junto com Albuquerque, em que pôs seus alcaides e capitães, e por ellas lhe deu em Portugal a villa de Santiago de Cacem, que é do Mestrado de Santiago.
As quaes fortalezas com outras rendas n'este reino, depois deu o Principe ao dito D. Affonso de Monroy, porque seguisse e servisse a El-Rei D. Affonso seu padre, como na guerra sempre serviu bem e fielmente até ás pazes.
Outro si porque no anno em que El-Rei U. Affonso entrou em Castella a fortaleza de Noudal que é Mestrado d' Avis, por engano e astúcia de guerra se tomou, e a este tempo era em poder de Martim de Sepúlveda, fidalgo castelhano, o Príncipe por concerto o trouxe a seu serviço com promesssas que lhe fez. As quaes depois com elle cumpriu, a contentamento do dito Martim de Sepúlveda segundo era obrigado.
E sendo El-Rei D. Affonso em França, o Príncipe fez cortes geraes em Mantemór-o-Novo, onde para estas necessidades da guerra lhe foi pelo reino outorgado dinheiro, para que lançaram pedidos.
De como El-Rei D. Affonso desapareceu em França, e o Príncipe seu filio por seu mandado se alevantou por Rei em Portugal
Evolvendo a El Rei D. Affonso que era em França, despedido elle de Ras como atraz fica, se foi com sua gente a Ruão, onde esperando pelo aviamento que se dava á sua embarcação, repousou muita parte do verão, e d'alli se foi pelo rio abaixo até a Áynafrol, que é porto de mar, onde a frota e cousas da armada para sua vinda se aparelhavam, e alli esteve o mez de Setembro, no qual tempo sentindo elle que a esperança para as cousas de Castella não lhe respondiam conforme a seu propósito, e que não fora por fallecimento de seu esforço, cuidado e diligencia, pois em Portugal e Castela, e em Roma, em França e Borgonha, tinha procurado todo o que para sua empresa pareceo conveniente e necessário, e todo lhe falecera, vendo já cerrados todolos outros caminhos de que esperasse conseguir desejado effeito, crendo que tantas contrariedades não podiam ser sem vontade de Deus, determinou entresi como desconfiado já de remédio leixar este mundo e seus debates, e sem ser conhecido ir-se a Jerusalém, onde propôs servir a Deus, e para o cometer e fazer sem dos seus ser sentido, custumou por alguns dias ir só em romaria ante manhã junto com Aynafrol, e assi também retraído escrevia de sua mão algumas cousas, que logo metia em um cofre de que trazia a chave, dando a entender que por se haver de meter no mar em tempo de inverno fazia ou reformava seu testamento.
E em fim um dia ante manhã, vinte e quatro dias de Setembro de mil e quatrocentos e setenta e sete, El-Rei cavalgou como sohia, e levou comsigo a cavallo Soeiro Vaz e Pedro Pessoa, ambos seus moços da camará, e a elle aceptos, e dois moços disporás.
E mandou a Estevão Martins seu capellào, que o fosse aguardar á estrada de hi meia jornada, onde logo com elle se ajuntou.
E d'hi fez tornar a Aynafrol um dos moços d'esporas a que deu a chave do cofre que leixava, com mandado que o abrissem, como abriram, em que leixava uma carta para El-Rei de França com remoques dissimulados reportados á sua desaventura, em que também lhe dava conta do fundamento que tivera para sua partida, que era servir a Deus ; porque assi lhe fizera voto de o fazer depois da morte da Rainha sua mulher, sendo o Príncipe seu filho em idade para reger seus reinos como era, pedindo- lhe amparo, favor, e ajuda para os seus que em seus reinos ficavam.
E outra carta para o Príncipe seu filho, em que lhe dava uma triste conta da sua viagem, encomendando-lhe e mandando-lhe por sua benção que logo se alevantasse e intitulasse por Rei.
E outra d'esta sustancia para todolos do reino, que como a próprio e verdadeiro Rei obedecessem ao Príncipe.
E outra para os seus que alli leixara, que estivessem á obediência e ordenança do conde de Farão, com que todos foram tão tristes, e fizeram tão dorosos prantos como a razão ensina, que em terras tão estranhas e em tanto desamparo, e a Rei tão amado devia ser.
E as cartas escriptas e ordenadas para Portugal, enviou logo ao Príncipe Antão de Faria, seu camareiro, que a esse tempo hi se acertou, e era lá ido com visitação e outras cousas entre o pae e o filho secretas, e por este apressado aviamento que ás cartas se deu, o Príncipe solenisou logo seu alevantamento em Santarém no alpendere de S. Francisco, a dez dias de Novembro de mil e quatrocentos e setenta e sete.
O que não foi sem muitas lagrimas e grande tristeza sua e de quantos hi eram.
E ante que o moço d'esporas d'El-Rei chegasse com a chave, já os portugueses vendo sua desacostumada tardança eram por ella em desesperado pensamento.
Nem o foi menos o monseur de Lebret, que com El-Rei para melhor ser aviado e servido sempre andava, acusando com irosas e graves reprensões a negligencia dos portugueses, por leixarem ir El-Rei assi só e de noite em terras alheias, nem elle se escusava de muita magoa por não dar d'elle melhor conta.
E porém por todolos caminhos e por toda a terra com gente de pé e de cavallo fez e mandou com muita trigança infindos avisos, dando voz que El-Rei de Portugal que lhe fora encomendado era fugido contra prazer e serviço d'El-Rei de França.
Pelo qual todolos franceses ouvida esta fama, leixadas todas suas cousas seguiram avante pelos caminhos de Roma, em que não podiam errar; porque de uma parte corria o rio de Ruão, que não podia passar, e da outra era o mar.
Os quaes troteiros tanto que d'El-Rei acharam nova, logo de uns em outros correram e seguiram com tão apressurada diligencia, que a dois dias foram em continente com elle, que de noite estava já aposentado em uma villagem, e jazia já, onde na pousada e camará entrou com elle um gentil homem francês, e porque os portugueses negaram El-Rei, conveio a elle por ser fora da duvida acorda-lo e reconhece-lo ; porque ElRei por dissimulação d'aquelle apartamento, por não ser por caminhos em alguma differença conhecido, não comia nem dormia apartado, mas com todos familiarmente, e tanto que El-Rei foi conhecido, o francês com muito acatamento lhe pedio perdão pelo espertar, dando a culpa aos seus pelo encubrirem, e lhe não dizerem a verdade.
E leixando-o na cama se sahio, e da parte d'El-Rei de França fez logo ajuntar todo o lugar, por que mui sem rumor em toda a noite foi guardado e velado, d'onde ainda que quizera já não poderá sahir.
E logo n'aquella noite agram pressa este gentil homem fez messegeiros, uns a El-Rei de França, que por acertamento não era de hi longe, e outrcs a Aynafrol aos portugueses e a Monseor de Lebret, detendo El-Rei na mesma casa em que o achara, e fazendo-o mui bem servir.
O conde de Penamacor com tanta sua magoa, como foi a culpa d'este caso por ser a isso mais obrigado por ser seu camareiro mor, era já em caminho em busca d'El-Rei, com determinação de nunca sem elle tornar a Portugal, e pelo aviso que houve de ser já achado,foi logo com elle, e porque o achou forte para sua tornada, avisou logo e enviou chamar o conde de Farão, e D. Álvaro seu irmão e outros senhores aceptos, que logo não com menos pressa que alegria o foram vêr, e d'elles e de uma carta consolatoria que hi veio d'EI-Rei de França, se leixou vencer para tornar e desistir de seu propósito.
De como El-Rei D. Affonso embarcou em Frayiça e se veio a Portugal, e se vio com o Príncipe seu filho
Epara embarcar, por algum pejo que teve dos que o conheciam, não tornou a Aynafrol, mas por outro caminho em que por seu desporto todos os principaes juntamente comiam e folgavam, vieram a uma angra do mar que dizem a Oga, onde para a pessoa d'El-Rei estava já prestes uma carraca que mandara fretar a Antona, e alli vieram logo de Aynafrol as outras naus de França, para todos embarcarem como embarcaram, e fizeram logo vella, e em poucos dias foram ancorar através d'Antona á ilha d'Oyque, onde El-Rei houve rebate de novas de oitenta urcas dallemães que vinham contra franceses.
E porém por ventos contrairos não podaram as urcas entrar, e a El-Rei conveio sair da ilha não pela banda do Norte por onde entraram, mas pelas agulhas que dizem logar mui perigoso.
E d'alli no mez d'Outubro fez vella, e com um pouco de temporal que sobreveio uns navios em que vinham cavallos não poderam aguardar a conserva,e vieram-se diante a Portugal, por que o Príncipe da vinda d'El-Rei seu padre foi logo avisado, sendo havia muito pouco alevantado já por Rei, como atrás disse.
Arribou El-Rei em Cascaes, onde logo foi certificado que o Príncipe seu filho era já obedecido e intitulado por Rei, e foi surgir a Oeiras, e ao outro dia sahio em terra, e no mesmo dia veio hi logo o Príncipe seu filho, que em o vendo com lagrimas de tanto prazer e alegria, como foram de paixão e tristeza as de Santarém, quando em sua vida e por sua obediência se alevantou por Rei.
E com muita reverença com os giolhos em terra lhe beijou as mãos, ás quaes com palavras de Príncipe tão excellente, e filho tão bom e tão obediente como elle era, logo renunciou e depôs o titulo de Rei, de que por cumprir seu mandado e por haver sua benção mais que por cobiça de reinar se intitulara.
Com este despejo e bondade do Príncipe ficou El-Rei e todolos de sua companhia muito descarregados e alegres, e El-Rei logo com razões e causas muito de louvor quizera obrigar o Príncipe para não desistir do nome de Rei e do hereditário cetro que já tinha, mas elle com outras de não menos honestidade que merecimento, sempre se escusou, e como quer que depois El-Rei lhe movesse e rogasse que todavia se chamasse e fosse Rei de Portugal, e que elle se contentaria ser Rei dos Algarves com a parte d'Africa, onde na guerra dos mouros folgaria servir a Deos e n'ella acabar, o Príncipe pelo amor e grande acatamento que lhe tinha nunca o quiz aceitar, e sempre o contrariou, de maneira que El-Rei D. Affonso não leixou o nome inteiro de seus reinos, nem o Príncipe em sua vida acrecentou o seu.....
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FUENTE:
CRONICA ALFONSO V (VOL III)
RUI DE PINA
RUI DE PINA
ResponderEliminarExtraordinaria la Crónica de Rui De Pina, de todos las viscicitudes que paso Alfonso V en su voaje a Francia, donde recibió el desprecio del Rey de ese país, llegando a la burla, al decirle que mejor les comprara las fortalezas a los castellanos, que tomarlas por guerra. Además le ofrece 50 mil escudos, para que tomara a "alguna gentil dama", en vista de que le Papa Sixto negó la dispensa para la Boda con Xoana su sobrina.
Excelente aportación, Sonia.
Gracias Alfredo..
EliminarRui de Pina empezó a escribir La Crónica de Alfonso V dos decadas despues..(En tres volumenes).
ResponderEliminarEl tercer Volumen,que es de donde se ha extraido este apartado,que seria escrito en años aun mas tarde,seguramente habray algun fallo como decir que en 1476 fue la batalla en agosto en Cabo de San Vicente..Ya que hay documentos de la epoca en 1476 como tambien cronistas del momento de ese mismo año que detallan con exactitud que la batalla surgio en Cabo de Santa Maria cerca de Cadiz..
Como tambien hay documentos de la epoca de 1485 y cronistas en esas fechas donde detallan el ataque de naos genovesas en cabo de San Vicente..
de ahi la confusion batallas navales en 1476 y 1485..
La batalla de 1476 fue pues en Cabo de Santa Maria,Cadiz..
La batalla de 1485 fue en Cabo de San Vicente..